Mito
no grego quer dizer relato, narrativa, servia como descrição através de
alegorias dos mistérios do universo, os deuses como representação, mas também pode
ser o arquétipo que dá poder a ação humana (VOZES, p. 323), o homem, portanto,
busca realizar este modelo sobre a terra, apesar do mito estar no campo do
sagrado, o ser humano cria mitos a todo o momento, o mito é um produto do
espírito popular (BRUGGER, p. 349), e é fácil para a mente humana crer nas próprias
invenções mitológicas, talvez por ser a razão uma dubitável fonte de controvérsias,
este campo que tem o poder da autoconsciência é o mesmo que produz externas
abstrações, projeções fantásticas que acabam sendo aderidas como realidades. O esporte
desde muito é uma fábrica destas produções, os próprios atletas gregos serviam
como representações dos deuses, suas forças e técnicas sobrepostas aos demais o
levavam ao Olimpo virtual. Hoje o MMA, as artes “marciais” misturadas, são a
melhor forma de produzir estes arquétipos, pois é o local onde dois seres
humanos treinados, especializados em técnicas podem provar única e
exclusivamente como indivíduos os seus “poderes” físicos e mentais diante do
outro que está na mesma situação e com as mesmas condições, se não completamente,
pelo menos sob determinadas regras que aproximam o duelo disto.
O
extinto evento japonês PRIDE foi criado para ratificar mitos nacionais, porém
ele auxiliou na criação de um mito brasileiro, Rickson Gracie venceu suas 11
lutas finalizando os adversários com a técnica desenvolvida por seu pai, após a
aposentadoria e toda aura que envolvia uma possível ultima luta daquele que é
considerado o maior lutador da família, o mito foi cravado, foi confirmado, a
lenda ainda vai além, consta que em todas as modalidades de luta que praticou,
foram mais de 300 lutas e nenhuma derrota, apesar dos boatos de haver uma
derrota numa competição de Sambo, o que tempera ainda mais o personagem. Aposentado
o homem Rickson parte para outras ideologias, mais espiritual ele fortifica a mística
que o envolve se aproximando do monge, do antigo sábio oriental. Já seus irmãos,
inclusive o Royce que dentro da historia é ainda mais importante, mas que não entrou
na esfera da deidade, mas está mais para herói, ou seja, o semideus, filho da divindade
da técnica e da falha humana, em todos estes conceitos sempre me atraiu mais a
ideia do herói que do deus, e mais ainda do anti-herói que do herói, detalhe
que o anti-herói não é o antagonista ou o inimigo, mas continua sendo o ator
principal da peça, porém completamente sujeito a fatalidade humana.
O
Brasil tem certa dificuldade de crer em seus mitos e principalmente de
exteriorizar seus feitos, coisa que os norte-americanos possuem pós-doutorado,
pois pra transformar Griffin vs Bonnar numa grande marca, há de se perceber o
valor disso, já o Brasil parece esquecer até que esta é a terra de Hélio e
Carlos Gracie.
Vou usar um exemplo de
como é fácil produzir um mito e como há uma aura mitológica no MMA diferente de
outros esportes, já que uma vitoria ou uma derrota possui força de tragédia grega
ou de relato rodriguiano, decreta um aspirante a mito ou encerra a carreira de
um grande atleta... levando estas considerações vamos ver como Chael Sonnen
convenceu o mundo de que ele é o maior de todos, e admito que o estilo dele, não
de luta mas de conduta é muito interessante, estes caras que não precisam de extenuantes
preparações destinadas a um tipo de adversário, pois é um lutador que tem um único
estilo e sempre vai lutar daquela forma, seja com quem for, a que horas for,
isto sai completamente do campo do super atleta e segue para lugares mais
humanos, além disso um cara extremamente inteligente e articulado que usou as
palavras para convencer o mundo que era superior aos mitos, ele levou sua mitologia
do campo físico somente ao campo do signo, fazendo do composto físico/mente
apenas o elemento mental, evidenciando que a nossa espécie é realmente sujeita
principalmente a razão e suas nuances, pois como um lutador limitado
tecnicamente poderia sobrepujar Anderson Silva? Tanto é que no mínimo desequilíbrio
mental que pode ter o atingido foi suficiente para que ele deixasse de
representar o personagem criado para o momento de superioridade e se encolhesse
na posição fetal de um indefeso. Tanto é que aquele que beirou duas vezes a
segurar o titulo mundial caiu rapidamente diante de um típico campeão mundial
sem expressão como Rashad Evans, porém passível de virar mito sob os poderes do
Tio Sam. Muito superior a estes dois, mas que possui características muito
particulares é Lyoto Machida, este também mais próximo do humano consegue
elevar a técnica do karatê ao patamar da funcionalidade graças a consciência e
sua descendência japonesa atrelada ao tempero brasileiro. Já Vitor Belfort está
mais para um monge cristão, do tempo da escolástica, muito criticado e muito
amado, admito que é muito divertido todo aquele discurso que se mistura entre a
sabedoria das metáforas e os deslizes idiotas da irreflexão, porém é um cara
que também foi abençoado por peculiaridades, e num país onde atletas gaguejam
dialetos incompreensíveis ele conseguiu unir o espírito do capitalismo de
oportunidades dos Estados Unidos com sotaque carioca, um cara que conseguiu o
aprimoramento técnico numa época em que as pessoas da sua geração se não estão aposentadas
estão em decadência, deve levar algum mérito nisso.
Agora
finalmente podemos chegar ao ponto fundamental desta reflexão: Anderson Silva. Este
é realmente um grande mistério, um mito à la brasileira, e talvez por isso não tenha
dado certo como mito, não como o maior lutador de todos, aqui ele deixou provas
suficientes para esta glória. Não bastava ser já o maior lutador e recordista de
defesas de títulos mundiais, precisaríamos criar Anderson Silva (the spider?), primeiro ele deveria
vencer o único cara até então do ramo conhecido pela grande mídia do país, dizendo
que havia aprendido o chute derradeiro com um “mestre de Aikido” que na verdade
é só um ator de filmes B de ação, depois ele precisava usar uma camiseta do Corinthians,
assinar com a grande empresa promovedora de imagens de atletas pertencente ao
maior atleta que já teve imagem explorada na grande mídia e na publicidade,
começa aí não um mito, mas um ícone pop, talvez um estágio fundamental para o
mito contemporâneo, atuar em vídeo clipe, satirizar a própria voz em comercial
de tevê, aparecer na rede Globo, aprender a falar inglês a força (devido o
patrocinador), ter o próprio documentário, e participação em novela e no
cinema, lançar livro polêmico, ser patrocinado pela Nike.
Agora
vamos ao mito, ou seja, para dentro do cage,
levado em consideração pela capacidade física, habilidade natural e uma
impressionante inteligência mental/corporal para o duelo, além de momentos de
certa benção divina (como a vitoria na primeira luta contra Chael Sonnen), Anderson
Silva surpreendia a cada luta, mas principalmente com um detalhe, suas lutas
foram vencidas em 75% na parte mental, e isso não é demérito ao atleta, muito
pelo contrario, o que me admira que aquele cara do ambiente de luta nada tinha
a ver com o cara das entrevistas e dos momentos “comerciais”, já que ao falar,
sempre agiu de forma estranha, as declarações sempre pareceram dúbias e deixam
transparecer algo que se quer esconder, talvez aqui o mito queira ser criado também,
mas não vejo muito como. Então o mestre do duelo mental vai enfrentar o jovem
lutador e psicólogo com 10 anos a menos e três centímetros de envergadura a
mais, chega Anderson com sua camiseta da Nike dizendo em letras de design moderno
“Anderson sabe” e isto basta, é o que querem nos impor, e nenhuma teoria da conspiração
suscitaremos, eu juro (estou farto disso), o cara então cai, e o mundo parece não
acreditar, mas nesta hora a humanidade precisa tomar consciência e deixar a
fantasia, pois até o invencível Jon Jones declara e toma esta consciência,
todos somos humanos, menos que herói o humano é mortal, é carne, é barro; e lá
está o mistério novamente tomando forma, Anderson havia dito (em tom de
brincadeira?) que o ideal naquela noite seria a vitoria de Weidman, e este
ficou de pé porque foi o único que mesmo abalado psicologicamente não se entregou,
não entregou o corpo aos lapsos da mente, mas continuou lutando contra si próprio,
e todos os livros dos grandes psicólogos lhe valeram naquela noite.
Agora
era o momento da historia perfeita para o herói, não ainda para o mito, mas
para o herói que voltaria e mostraria que o erro do seu lado humano seria substituído
pelo poder do lado divino, e o mundo todo acreditava nisso, porém algo não parecia
estar certo, apesar da mesma fala irônica, o semblante era triste, ele volta a
assinar contrato com o Corinthians, ele abandona o inglês esforçado da
entrevista ao UFC e volta à língua materna, ele está quieto demais. Ele anda
com uma nova roupa, uma jaqueta branca com um símbolo pouco identificável visto
da tevê, cadê os patrocinadores? Finalmente ele entra, camiseta do time, mas cadê
a Nike? Ele tenta falar com alguém antes de entrar na jaula, Mario Yamasaki não
deixa, e o primeiro round acontece como todos esperavam, com uma diferença, ele
está serio de mais, o segundo round e ele está serio de mais, de mais para
Anderson Silva, tudo acontece como de costume, mas a única diferença é que
mesmo perdendo os rounds ele sempre foi o dono da situação, sempre manteve o adversário
abalado, aquele que batia levava uma surra mental, desta vez não, o jogo virou,
Chis estava sóbrio e Anderson estava sem espírito, era simplesmente físico, era
somente razão, havia entrado sem fantasia, sem o onírico absurdo do seu mundo
dentro do ringue, era simplesmente o melhor lutador de todos os tempos, mas já não
era mito, nem herói.
Notas:
BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. Editora Herder: São Paulo, 1961.
VOZES. Léxico Vozes – informações gerais para o desenvolvimento dos
profissionais Vozes. Editora Vozes: Petrópolis.
Diego Marcell
29-12-13